Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 26 de Março de 2012, aworldtowinns.co.uk

Crítica cultural: Uma “Menina do Tanque” a rolar agita o Cairo

Por Samuel Albert

Detalhe de um mural do jovem artista egípcio Alaa Awad na Rua Mohammed Mahmoud no Cairo. O mural foi iniciado por vários artistas após os sangrentos protestos nessa rua, na sequência do massacre no Estádio de Port Said, e conta a história da revolta egípcia usando motivos faraónicos e focando os temas da morte e do luto
Detalhe de um mural do artista egípcio Alaa Awad na Rua Mohammed Mahmoud. O mural foi iniciado por vários artistas após os sangrentos protestos nessa rua, na sequência do massacre no Estádio de Porto Said, e conta a história da revolta egípcia usando motivos faraónicos e focando os temas da morte e do luto.
(Foto: Revolution Graffiti — Street Art of the New Egypt)

Nadine Hammam sabe alguma coisa sobre meninas em tanques. Ela foi uma das jovens icónicas que subiram para cima de um tanque de guerra na Praça Tahrir em Janeiro de 2011, durante a revolta de 18 dias que derrubou o presidente egípcio Hosni Mubarak.

Os manifestantes acolheram bem os soldados. Pensavam que o exército vinha em defesa deles contra a polícia assassina de Mubarak e os seus arruaceiros civis que atiravam blocos de lixo e pedras para a praça, da segurança dos telhados vizinhos e de um viaduto rodoviário. Com esperanças baseadas em partes iguais na ilusão e no desespero, muitos manifestantes gritaram: “O exército e o povo são uma só mão”. Contudo, os militares não tentaram impedir os ataques que vinham dos telhados, cercando e revistando os edifícios e o viaduto, ou prendendo os assassinos que estavam à vista de todos. Pelo contrário, os soldados ficaram parados a ver.

Desde a demissão de Mubarak que o exército passou a assumir a função de matar, torturar e encarcerar os jovens egípcios e outras pessoas que desafiam nas ruas o poder dominante. Aqueles que arriscaram e sacrificaram tanto por aquilo que desejavam que se tornasse numa revolução têm visto, pelo contrário, o espectro de um alinhamento profano, ainda que desconfortável e imprevisível, entre os EUA, a Irmandade Muçulmana, os restos do velho regime e a junta militar.

Hammam, uma artista egípcia nascida em 1974, diz que gostaria de voltar atrás no gesto dela de há um ano. “Fomos ingénuos ao pensar que o exército estava ali para nos proteger”. Mas, ao revisitar esse momento na actual exposição individual dela na Galeria Misr em Zamalek, do outro lado do Nilo frente à Praça Tahrir, ela não está apenas a olhar para trás para as ilusões perdidas. A imagem de uma jovem sobre um tanque de guerra que é a peça central da exposição reflecte mais do que a amarga frustração em relação a uma revolta que afastou um chefe de estado odiado mas não a estrutura estatal sobre a qual ele governava nem as relações económicas e políticas que esse estado representa. O trabalho dela também anuncia uma determinação em continuar a revoltar-se contra muita coisa que é inaceitável na sociedade egípcia e no mundo. Numa altura em que algumas pessoas estão a dizer que os jovens da Tahrir foram longe demais e que o que agora enfrentam ricocheteou sobre eles próprios, esta peça não mostra arrependimento.

Tank Girl, uma instalação com um grande quadro, tem uma sala só para si nesta exposição. A figura delineada a cor-de-rosa de uma jovem de rabo-de-cavalo, pintada com tinta acrílica macia e folhas metálicas brilhantes que sugerem os músculos e os vasos sanguíneos sob a pele dela, está sentada a cavalo na torre de um tanque cor-de-rosa. O único detalhe nessa silhueta é o sutiã vermelho luminoso dela. Todos os egípcios percebem que isso é uma referência — e uma feliz transformação — à chamada “menina do sutiã azul”, a jovem despojada do seu abaya e do véu pela polícia militar que a espancou com os seus longos bastões e a pisou no tórax em Dezembro passado, num protesto na Praça Tahrir contra o domínio militar.

Esta menina do tanque não é uma vítima humilhada. Ela não perdeu a sua “honra” — a nudez dela proclama isso. Ela e o tanque pintado a stencil são do mesmo tamanho; ela não só o montou como também o conquistou. Do canhão entre as pernas dela jorra uma torrente de ratos, que corre ao longo da pintura e pela parede abaixo, desaparecendo pelo chão da galeria.

Hamman deu diferentes explicações para o significado dos ratos, dizendo numa das vezes que os militares são ratos e noutra que os ratos representam os bilionários egípcios em pânico a quem Mubarak e agora os militares servem e protegem.

A artista escreveu um texto sobre esta peça: “Vocês podem espancar-nos, despir-nos, gasear-nos e fazer-nos testes de virgindade, mas nós acabaremos por vencer”.

Um outro detalhe de outro dos murais da mesma Rua Mohammed Mahmoud, com rituais fúnebres faraónicos, evocando os funerais dos mártires da revolta egípcia
Um outro detalhe de outro dos murais da mesma Rua Mohammed Mahmoud, com rituais fúnebres faraónicos, evocando os funerais dos mártires da revolta egípcia

A exposição também inclui uma série de pinturas intituladas Heartless [Insensível], cinco silhuetas de mulheres feitas em folha prateada que assinalam a forma como a redução das mulheres às partes dos seus corpos impede as relações humanas que elas desejam. Estas peças são belas na forma, num estilo “feminino” habitual (na escolha de cores e nos enfeites de jóias que destacam a atracção e o valor das mulheres) e violentas no seu conteúdo.

Embora a arte egípcia há muito que inclua imagens de mulheres nuas pintadas por homens, a situação tem mudado ultimamente. Às possibilidades oferecidas aos homens ricos têm sido acrescentadas, com a bênção religiosa, esposas “temporárias” e “secundárias” secretas, além das amantes ao estilo ocidental. Mulheres cobertas da cabeça aos pés estão à venda nas ruas do Cairo. Embora ainda se espere que em privado as mulheres sejam objectos sexuais (e procriadoras), em público — e agora frequentemente nas artes — elas têm de cobrir o cabelo que agride os homens com pensamentos pecaminosos. Os corpos pelas quais elas são apreciadas são considerados perigosos para a ordem pública.

Há um perigo crescente e largamente sentido de que tudo aquilo que algumas pessoas consideram ser padrões islâmicos venham a ser impostos a todos, através da lei, da intimidação ou simplesmente da aceitação silenciosa de costumes e da tradição. Um fotógrafo que documenta a história de um bairro tradicional descobriu que não podia fazer retratos de mulheres para exibição pública — a exposição dele inclui fotos de mulheres locais tiradas há décadas mas não hoje. Adel Imam, um dos mais famosos actores do cinema árabe, foi julgado à revelia e condenado a três meses de trabalhos forçados por ter “ofendido o Islão” nos seus papéis no cinema e em palco. O falecido romancista Naguib Mahfouz, galardoado com um prémio Nobel, é vilipendiado como sendo simplesmente um vendedor de pornografia.

Em parte isto acontece porque a moralidade associada ao Ocidente e ao regime de Mubarak ficou completamente exposta e odiada, mas o que está a ser oferecido, supostamente como alternativa, também é reaccionário. Não é um facto secundário que Persepólis, um filme autobiográfico em desenho animado que narra o violento conflito entre uma jovem iraniana rebelde de uma família laica e a República Islâmica, já não possa ser exibido no Egipto e na Tunísia, proibido não pela lei nem por decreto, nem mesmo, ostensivamente, pelo seu conteúdo político, como no Irão, mas pela pressão social, porque é considerado “blasfemo”. Sob a capa de não se “ofender” sensibilidades religiosas, muita gente que deseja uma mudança social confunde o direito das pessoas a praticarem a sua religião com a exigência da religião a ter o “direito” a definir a sociedade.

Em várias ocasiões, isto tem levado mulheres artistas e outras mulheres no Egipto e noutros países do Médio Oriente a auto-retratarem-se nuas como grito de protesto. Quando em Outubro passado a blogger e activista política Alias El-Mahdy colocou online uma fotografia dela nua, foi atacada como se tivesse cometido o pior crime imaginável, um mal contra o qual muito do país conseguiu unir-se, como se uma mulher que tira as suas próprias roupas fosse mais perigosa para a sociedade dominante que aquilo que os soldados têm feito às mulheres em público e em privado. Houve mulheres do Egipto e de outros pontos do Médio Oriente, incluindo o Irão e Israel, que colocaram fotos de grupo delas próprias nuas e com faixas de solidariedade para com ela.

É revelador sobre a actual cobardia entre alguns intelectuais egípcios o facto de a exposição de Hammam ter sido atacada por lidar com o sexo e a nudez, não só pelas previsíveis autoridades religiosas mas também por alguns críticos cínicos identificados com a cultura de arte global e com publicações ocidentais. Eles acusam-na de escolher os seus tópicos porque o “sexo vende” e de o trabalho dela estar a vender muito bem neste momento, para além de provocar uma grande agitação na comunicação social.

Mas como sublinha uma outra obra desta exposição, isto é mais que arte de actualidade, e é o oposto do porno, seja o ligeiro ou outro. O facto de as suas figuras femininas serem planas e anónimas — ironicamente apenas conseguido com muitas camadas de tinta — é uma referência ao modo como as mulheres são aplanadas pelo papel dominante desempenhado pelos homens ao longo das suas vidas, do nascimento à morte, e roubadas da sua identidade porque são transformadas em mercadorias descartáveis. Mesmo nas duas exposições anteriores e mais “sexuais” dela no Cairo, Aikl Aish (Ganhando a Vida, 2008) e I'm for Sale (Estou à Venda, 2010), os retratos que ela fez de mulheres tal como elas são transformadas pelo olhar masculino são mais inquietantes que eróticos. Eles desafiam as relações dominantes entre homens e mulheres ao revelar as relações de poder e de troca de mercadorias que elas moldam.

Um outro detalhe dos murais da Rua Mohammed Mahmoud relembrando os mártires da revolta egípcia
Um outro detalhe dos murais da Rua Mohammed Mahmoud relembrando os mártires da revolta egípcia

A obra de Hammam está intimamente ligada ao seu contexto. A exposição dela está a decorrer numa cidade onde os tanques e os carros blindados se tornaram agora numa imagem comum no centro da cidade. Foi inaugurada a 8 de Março, Dia Internacional da Mulher em que centenas de mulheres marcharam até ao parlamento. As reivindicações oficiais delas limitavam-se à admissão de mais mulheres no comité de redacção da nova constituição (em que um dos principais debates é sobre a preservação da actual situação insuportável das mulheres ou a instituição da lei islâmica da Xariá) e no parlamento, o qual não é mais que uma folha de parra para os militares e a sua crescente subserviência em relação aos EUA. Mas as imagens em vídeo das manifestantes, tanto das cobertas com véus como das descobertas, e as entrevistas, parecem revelar um descontentamento mais profundo e potencialmente explosivo.

Pouco depois, a 11 de Março, um tribunal militar absolveu o médico militar acusado de fazer “testes de virgindade” a sete mulheres presas quando o exército dispersou um protesto na Tahrir há um ano atrás. Poucas pessoas estavam à espera de outro resultado do julgamento de um militar pelos militares (os advogados das queixosas civis nem sequer foram autorizados a participar). Os militares chegaram à conclusão que o veredicto de um tribunal civil, de que o exército tinha de acabar com essas práticas deliberadamente degradantes, não podia ser aplicado porque tinha ficado agora “provado” que elas nem sequer tinham acontecido!

Um porta-voz militar reafirmou que o exército continuará a considerar as mulheres que participam em actividades políticas como suspeitas de prostitutas e “quem sabe, mesmo espiões”. Para esconderem a sua subserviência em relação aos EUA, os militares apelidam frequentemente os seus críticos de agentes israelitas. Isso é particularmente convincente para as pessoas que consideram que a essência da questão palestiniana é Israel contra o Islão, pelo que qualquer pessoa considerada anti-islâmica deve ser pró-Israel.

Contudo, e ao mesmo tempo, a obra de Hammam não é estritamente nada actual. Pode ter um significado universal, muito após os actuais acontecimentos. Em parte, isto é assim porque se ergue contra uma dicotomia fatalmente falsa que se tornou demasiado amplamente aceite: ou uma pessoa é um “verdadeiro egípcio” (e portanto venera todas as instituições e tradições retrogradas que esmagam as pessoas, e que na realidade têm sido frequentemente apoiadas pelos ocupantes e opressores do país, incluindo actualmente os EUA), ou é servil às modas e valores que prevalecem no Ocidente e não se preocupa com as massas egípcias.

Uma das características notáveis da obra de Hammam, tão texturada intelectualmente como tecnicamente, é que ela liga a situação particular das mulheres no Egipto ao estatuto universal das mulheres como seres menores. Se alguma coisa, além de incomodar deliberadamente as forças retrógradas no seu próprio país, o trabalho dela é particularmente crítico da cultura ocidental onde o valor das mulheres é ainda mais claramente determinado pelo valor delas enquanto mercadoria, frequentemente mesmo aos próprios olhos delas.

Os artistas e o público de arte podem ser um segmento muito pequeno da sociedade egípcia (tal como alguns críticos caluniosamente se comprazem a salientar), mas os temas de que Hammam trata tocam todas as mulheres e são essenciais para a questão de saber que tipo de sociedade será o Egipto. O que tem sido identificado como uma agitação entre os artistas egípcios um ano após a queda de Mubarak pode estar a ocorrer agora porque, até à relativa acalmia de hoje, eles estavam demasiado ocupados nas ruas para trabalharem nos seus estúdios. Também é, muito provavelmente, uma explosão de expressões no campo da arte de sentimentos que foram profundamente frustrados e que, nesta altura, estão a ter dificuldade em encontrar uma saída política.

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Os artistas do Cairo lançaram uma campanha para “abrir” as sete barricadas de betão que os militares ergueram à volta do Ministério do Interior e outros locais sinistros do poder, “pintando através das paredes”. Eles apelaram a que os residentes dos bairros saíssem às ruas para participarem a partir de 9 de Março no aniversário do dia em que o exército atacou pela primeira vez a Praça Tahrir e impôs os “testes de virgindade”. A obra de Hammam e algumas dessas pinturas murais podem ser vistas e debatidas nos seguintes sítios da internet em inglês:


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