Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 23 de Julho de 2007, aworldtowinns.co.uk

O texto que se segue é a primeira de duas partes de um artigo de Raymond Lotta publicado no n.º 94, com a data de 1 de Julho de 2007, do Revolution/Revolución, voz do Partido Comunista Revolucionário, EUA (revcom.us/a/094/chavez-en.html em inglês e revcom.us/a/094/chavez-es.html em castelhano). Faz parte de uma análise mais global sobre Hugo Chávez e o que tem acontecido na Venezuela desde que Chávez chegou ao poder em 1998, a qual está a ser desenvolvida por um grupo redactorial.

Hugo Chávez tem uma estratégia para o petróleo...
mas levará isso à emancipação?

1ª Parte

Por Raymond Lotta

Nota do editor do Revolution/Revolución: A natureza da “revolução bolivariana” de Hugo Chávez é uma questão muito importante e amplamente discutida entre progressistas e pessoas de pensamento radical. Chávez tem levado a cabo um conjunto de medidas sociais e económicas cujos objectivos declarados são dar força aos pobres e politicamente desfavorecidos da sociedade venezuelana e melhorar a sua vida; ele tem condenado os EUA como potência imperialista e ameaçadora; e, em 2005, anunciou que a Venezuela iria entrar num projecto de “Socialismo do Século XXI”. Numa altura em que os EUA levam a cabo a sua “guerra contra o mundo” e em que os EUA têm imposto aos países do Terceiro Mundo um programa económico neoliberal triturador e brutal – os acontecimentos na Venezuela têm despertado um grande interesse.

Mas quais são, de facto, o programa e a posição de Hugo Chávez, qual a essência do processo em curso na Venezuela e para onde é que se está a encaminhar? Será que o programa de Chávez representa uma verdadeira alternativa à exploração encabeçada pelo imperialismo e um caminho viável para a emancipação no mundo actual? E qual o significado do socialismo no mundo globalizado de hoje?

A nossa perspectiva é que a “revolução bolivariana” não representa uma ruptura de fundo com o imperialismo, nem encarna uma visão ou um caminho verdadeiramente radical de transformação da sociedade. Mas perceber por que é que isso é assim é uma questão complexa que requer uma análise aprofundada. Na análise global que será publicada em breve, discutiremos os factores históricos que moldam o desenvolvimento da Venezuela, o modelo económico que Hugo Chávez tem vindo a propor, o papel do exército e das novas instituições populares na “revolução bolivariana”, as forças sociais e de classe nela envolvidas e a liderar esse movimento e o debate mais vasto sobre o “socialismo do século XXI” e os verdadeiros desafios de fazer uma revolução no mundo actual.

Embora apresentemos esta crítica ao projecto de Chávez, isto de nenhuma maneira rompe com a nossa posição em relação ao povo venezuelano e a nossa total oposição a qualquer tentativa do imperialismo norte-americano para minar ou levar a cabo um ataque aberto contra o regime de Chávez.

Este artigo centra-se na economia petrolífera da Venezuela. Começamos por aqui porque o petróleo tem sido central no domínio histórico da Venezuela pelo imperialismo e no desenvolvimento económico-social da Venezuela e porque o petróleo representa um papel central no programa de Hugo Chávez para recuperar a soberania e transformar a sociedade venezuelana.

O nosso objectivo é contribuir para a sua compreensão, aprender com as análises de outros e aprofundar o diálogo e o debate sobre estas questões cruciais.

Em 1998, durante a sua campanha eleitoral para a presidência, Hugo Chávez atacou assim a velha elite:

“O petróleo é uma arma geopolítica e estes imbecis que nos governam não percebem o poder de um país produtor de petróleo.”1

Ele exprimiu o pensamento estratégico dele sobre o petróleo numa entrevista que deu em 2006:

“Estamos hoje a implementar um programa estratégico chamado Plan Siembra Petrolera [Plano Sementeira Petrolífera]: usar a riqueza do petróleo para que a Venezuela se possa tornar num país agrícola, num destino turístico, num país industrializado com uma economia diversificada. Estamos a investir milhares de milhões de dólares em infra-estruturas: geradores de energia eléctrica a partir de energia térmica, um grande caminho-de-ferro, estradas, auto-estradas, novas cidades, novas universidades, novas escolas, recuperação de terras, construção de tractores e empréstimos aos camponeses. Um dia não teremos mais nenhum petróleo, mas isso será no século XXII. A Venezuela tem petróleo para mais 200 anos.”2

Chávez tem frequentemente falado em reduzir a dependência excessiva da Venezuela do sector petrolífero. Mas, como sublinham as declarações acima reproduzidas e a sua política em concreto, durante algum tempo, e certamente a médio prazo, o petróleo continuará a ser a espinha dorsal da economia e a pedra angular da política externa da Venezuela.

Que tipo de recurso?

Não há dúvida nenhuma que a Venezuela é rica em petróleo. A Venezuela possui as maiores reservas de petróleo convencional do hemisfério ocidental (mais do triplo das reservas conhecidas dos EUA); tem biliões de pés cúbicos de gás natural; e na Faixa Petrolífera do Orenoco tem, segundo algumas estimativas, reservas inexploradas que podem exceder as da Arábia Saudita. Nem há dúvida nenhuma que as receitas do petróleo podem crescer astronomicamente: o preço do petróleo está a aproximar-se de máximos históricos, na faixa dos 65 dólares por barril.

Mas por que é que, como esfera de investimento e instrumento financeiro de “petrodólares”, o petróleo é o “ouro negro”? O petróleo tornou-se numa fonte de riqueza produtiva e monetária dentro de um certo conjunto de relações sociais de produção. O crescimento e a expansão contemporânea do capitalismo mundial produziram uma estrutura agro-industrial baseada no lucro que depende larga e desproporcionadamente de um recurso não-renovável, o petróleo, como bem económico essencial cujo preço mundial tem um impacto nos custos de produção, nos lucros e na vantagem competitiva. No período após a II Guerra Mundial surgiram novas indústrias baseadas ou relacionadas com o petróleo, como as do automóvel, da petroquímica e dos plásticos. Além disso, a exploração, extracção, refinação e comercialização do petróleo constituem um sector altamente lucrativo da economia mundial.3

A trajectória histórica do desenvolvimento alimentado a petróleo sob o capitalismo mundial tem sido ruinosa para a vida humana e para a ecologia do planeta. A produção e os padrões de consumo dos países capitalistas avançados – onde vive 25 por cento da população mundial que consome 75 por cento dos recursos mundiais – estão agora a culminar numa crise climática global. Uma economia mundial justa e racional não seria organizada em torno de uma estrutura social de exploração e desigualdade nem baseada neste tipo de alicerces de recursos técnicos insustentáveis.

O petróleo também se tornou numa arma na política mundial. Também isto é função do imperialismo. As relações de poder são intrínsecas ao imperialismo. O controlo dos recursos cria vantagens geoeconómicas e um domínio geopolítico – em que algumas potências obtêm acesso privilegiado e monopolístico aos recursos e a capacidade de controlarem outras economias e outros estados. O petróleo tem sido um objecto de rivalidade, conluio e conquista entre imperialistas, incluindo através de guerras locais por procuração. O petróleo tem sido uma forma de sustentar e controlar regimes neocoloniais submersos pelas receitas do petróleo e pela corrupção, como o da Nigéria. A máquina militar imperialista global moderna funciona a petróleo.

O petróleo e a Venezuela

Durante o último meio século, as receitas do petróleo lubrificaram um certo tipo de crescimento e desenvolvimento da Venezuela e, ao mesmo tempo, acorrentaram a Venezuela a uma economia petrolífera internacional dominada pelo imperialismo ocidental.

A Venezuela tem representado um certo papel histórico na divisão internacional imperialista do trabalho: o de exportador estratégico de petróleo. E o pilar económico do sistema moderno do estado venezuelano tem sido a colecta de receitas das companhias petrolíferas, através das taxas cobradas por lhes permitir extrair o petróleo do país. Durante o último meio século, as receitas do petróleo lubrificaram um certo tipo de crescimento e desenvolvimento da Venezuela e, ao mesmo tempo, acorrentaram a Venezuela a uma economia petrolífera internacional dominada pelo imperialismo ocidental.

O petróleo, com os seus altos e baixos, redefiniu a geografia económica do país. A população de Caracas, capital da Venezuela, mais que duplicou entre 1920 e 1936, voltou a duplicar entre 1936 e 1950 e triplicou entre 1950 e 1971. A economia petrolífera criou uma nova classe média dependente do estado e das receitas do petróleo, enquanto os bairros de lata habitados pela população rural pobre se expandiram e infiltraram literalmente as encostas barrentas de Caracas ocidental. Hoje em dia, quase 90 por cento da população da Venezuela vive nas cidades e metade da população de Caracas vive na pobreza. Uma medida dos efeitos desfiguradores do petróleo na estrutura económica e social da Venezuela tem sido o enorme crescimento da “economia informal” nas cidades: cidadãos urbanos por conta própria (p. ex. vendedores ambulantes e negociantes de rua) e trabalhadores que se dedicam a tarefas e serviços não registados ou “fora dos livros”.4

O petróleo tem produzido e perpetuado uma trajectória de desenvolvimento marcada por grandes fossos económicos e sociais: entre a produtividade do sector petrolífero e a produtividade dos sectores não-petrolíferos; entre o desenvolvimento das zonas rurais e o das zonas urbanas; entre ricos e pobres, nas cidades e nos campos.

Recuemos um pouco. Entre 1958 e 1998, a Venezuela recebeu cerca de 300 mil milhões de dólares em receitas do petróleo. O que é que isso significou para as massas populares da Venezuela e que tipo de desenvolvimento resultou da sua subordinação à dinâmica da economia imperialista mundial e, dentro dela, à indústria petrolífera mundial?

A produção petrolífera sufocou de facto qualquer diversificação industrial significativa. Muitas das novas infra-estruturas construídas entre os anos 60 e 80 estão a deteriorar-se por falta de manutenção. Inundações e deslizamentos de terras, agravados por uma urbanização descontrolada, varreram povoações inteiras. Os problemas sanitários acossam os bairros de lata em que vive 60 por cento da população urbana da Venezuela. O número de pessoas a viver oficialmente na pobreza quase duplicou entre 1984 e 1995; e, hoje em dia, mais de metade da população trabalhadora da Venezuela integra a precária economia informal.5

Hugo Chávez tem denunciado a economia petrolífera oligárquica pela corrupção, clientelismo e extremos de imensa riqueza e esmagadora pobreza. Ele tem falado da necessidade de reavivar a economia camponesa. Mas será que uma forma diferente de economia petrolífera pode gerar uma justa e viável alternativa ao modelo económico neoliberal e levar ao socialismo? E quão diferente será essa economia se requer uma monumental infusão de investimento de capital estrangeiro e o risco do jogo dos mercados petrolíferos?

Um programa que não consegue romper com o status quo; um programa minado de contradições

Chávez ligou o sucesso do seu programa de igualdade social e diversificação da economia às receitas do petróleo. Como ele tem repetidamente declarado, a sua principal tarefa económica é “semear o petróleo”. Isto é uma expressão e um programa que tem feito parte da política e do discurso populista e nacionalista da Venezuela desde os meados dos anos 30: o governo tem que garantir um maior controlo sobre as receitas do petróleo, usar a riqueza petrolífera para promover o desenvolvimento e fazer com que mais gente partilhe a generosidade do petróleo. Chávez precisa dos preços do petróleo elevados e a subir para sustentar o grande aumento dos gastos governamentais, uma cada vez maior presença do estado na economia e os preços subsidiados de certos produtos internos (sobretudo a gasolina mas também bens de consumo importados, incluindo alimentos). Em 2004, foram atribuídos ao financiamento de programas sociais 1700 milhões dos 15 mil milhões de dólares do orçamento da companhia petrolífera estatal; pouco depois, ascendiam a 4 mil milhões por ano.6

Chávez, depois de ter reestruturado a administração da companhia petrolífera estatal, está a seguir três orientações para maximizar as receitas do petróleo e cumprir o seu programa. Ele tenta expandir a produção de petróleo e aumentar a propriedade estatal e a parte governamental das receitas, direitos e impostos provenientes da actividade estrangeira no sector dos hidrocarbonetos (petróleo, gás natural e carvão). E procura novos mercados para o petróleo, tanto para absorverem a expansão da produção como para servirem de almofada contra possíveis pressões ou vinganças dos EUA. Não se trata simplesmente de ferramentas técnicas de gestão económica; encaixa-se numa lógica capitalista e está minado com as contradições de um desenvolvimento dependente controlado pelos imperialistas.

A primeira orientação, o estratégico Plan Siembra Petrolera em 25 anos, na sua primeira fase de 2005 a 2012, requer um aumento de produção dos actuais níveis (as estimativas para 2006 vão dos 2,8 aos 3,3 milhões de barris por dia) para 5,8 milhões de barris de petróleo por dia em 2012. Na indústria do gás, também está previsto um grande desenvolvimento análogo.

A companhia petrolífera estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) estimou em 2006 que esta fase do plano de expansão requer cerca de 75 mil milhões de dólares para financiamento dos novos investimentos. De onde é que virá esse dinheiro? A maior parte virá da companhia petrolífera estatal. Espera-se que cerca de 25 a 30 por cento provenham de fontes externas, privadas: empréstimos bancários, compensados pelas receitas antecipadas do petróleo, e investimentos das companhias petrolíferas estrangeiras que operam na Venezuela.7

Chávez está a contar com o aumento da produção da chamada Faixa Petrolífera do Orenoco, uma região no centro do país que tem sido o local de importantes investimentos da companhia petrolífera estatal e de operadores estrangeiros como a Exxon-Mobil, a ConocoPhillips e a francesa Total SA. Desde os anos 90, estas transnacionais imperialistas investiram mais de 17 mil milhões de dólares, cujo valor pode ter aumentado para 30 mil milhões. A extracção e refinação desse crude ultra-pesado requerem um dispendioso investimento em maquinaria pesada, em tratamento e em armazenamento. A refinação parcial desse petróleo no próprio local, para o tornar suficientemente líquido para poder fluir nos oleodutos, produz enormes quantidades de desperdício.

Há aqui uma aguda contradição. Por um lado, o estado tem que extrair recursos financeiros da indústria petrolífera para financiar o seu desenvolvimento e os seus planos de despesas sociais (e, cada vez mais, para ir ao encontro das crescentes expectativas populares e consolidar a base política do regime de Chávez). Por outro lado, o estado tem que investir para manter a competitividade da indústria petrolífera como empreendimento capitalista no mercado capitalista internacional.8

Uma vez mais, há aqui uma grande tensão. Nos dois últimos anos, os programas sociais absorveram do orçamento da companhia petrolífera estatal uma parte maior do que as despesas em manutenção e em nova capacidade petrolífera. Esta despesa social do governo cria tensões aos investimentos necessários no sector petrolífero. Dizer que os investimentos são “necessários” não é fazer uma declaração puramente técnica; na realidade, os investimentos são “necessários” do ponto de vista de uma economia exportadora de petróleo e dos ditames do mercado mundial: melhorar a eficiência e compensar possíveis declínios dos preços com a expansão da produção. Como os poços da Venezuela são muito antigos, a produção decresce 23 por cento ao ano – e por isso é necessário perfurar novos poços só para manter a capacidade.9 Há uma pressão exercida pela competição do mercado mundial e intensificada pelos baixos níveis de investimento no sector petrolífero da Venezuela relativamente a outros países produtores de petróleo, para que melhore e expanda a indústria e mantenha a rentabilidade.

Se o investimento estrangeiro vier a financiar uma parte significativa do Plan Siembra Petrolera, esse investimento trará consigo um controlo de facto e colocará uma grande margem de manobra nas mãos desses investidores estrangeiros. É importante ter isso em mente. A Venezuela não é um caso único por ter a soberania formal do seu petróleo. Cerca de três quartos das reservas mundiais de petróleo e gás e metade da sua produção global são controlados por companhias petrolíferas estatais nacionais como a Saudi Aramco, a Kuwait Petroleum e a companhia estatal argelina. Mas as companhias petrolíferas estatais nacionais dependem do capital financeiro internacional, operam através dos canais internacionais de comércio e distribuição e colaboram com as grandes transnacionais petrolíferas sediadas no Ocidente, como a Exxon-Mobil. Essas empresas transnacionais e as suas redes de estacões de serviço têm uma forte vantagem competitiva: a sua escala, alcance e capacidades administrativas e tecnológicas, capacidade financeira, apoio dos governos imperialistas ocidentais e capacidade de sair de um país como a Venezuela.

Quanto à segunda orientação: impostos mais elevados e o pagamento de direitos. Em Abril de 2006, Chávez anunciou a sua intenção de aumentar de 40 para 60 por cento a participação da PDVSA em grandes projectos. O governo de Chávez está a criar novos tipos de empresas conjuntas (“joint ventures”, agora chamadas “empresas mistas”) com a Shell, a Chevron, a British Petroleum e outras. A propriedade dos recursos e dos lucros do petróleo é partilhada sob a forma de novas empresas únicas – a partir de agora, o governo venezuelano obterá uma proporção mais elevada dos lucros do que antes, enquanto as companhias petrolíferas estrangeiras com grandes investimentos beneficiam dos elevados preços actuais do petróleo e da perspectiva de novos e lucrativos campos petrolíferos. Ao mesmo tempo, o governo negociou com as 22 companhias estrangeiras que operam na Venezuela para que dessem o seu acordo a uma nova lei fiscal que está a ser aplicada retroactivamente.

A 1 de Maio de 2007, Chávez cumpriu o seu ultimato às companhias estrangeiras para que aceitassem um aumento da parte detida pelo governo venezuelano ou cessassem as operações. Chávez pode ser um negociador duro (e teve êxito na obtenção de uma maior fatia das crescentes receitas das companhias petrolíferas que aí querem ficar para recuperarem o valor dos seus investimentos e obterem enormes lucros). Ao mesmo tempo, para manter vivos esses projectos e prosseguir com os planos de expansão, Chávez tem que chegar a algum tipo de acordo com o capital estrangeiro, uma vez que essas empresas fornecem recursos financeiros e tecnológicos essenciais. Por isso, a ameaça de posse foi atenuada com um compromisso de compensação das companhias.10

A terceira orientação do programa petrolífero é reestruturar as relações de comércio externo da Venezuela para a afastar da dependência dos EUA como mercado, fonte de capital de investimento e capacidade tecnológica. A Venezuela fornece cerca de 12 por cento das importações diárias de petróleo dos EUA e joga um certo papel estratégico na capacidade dos EUA projectarem o seu poder no mundo. Mas o outro lado da equação revela algo mais, ilustrando um aspecto da dependência estrutural da Venezuela: os 12 por cento das importações de petróleo dos EUA fornecidos pela Venezuela representam 60 por cento da produção total da Venezuela!11

Procurando diversificar os mercados, Chávez iniciou negociações com a China e tem planos para vender petróleo venezuelano à China, o segundo maior consumidor de energia do mundo, bem como à Índia. Mas fornecer esses mercados tem custos elevados. A Venezuela não tem um porto no Pacífico e os grandes navios-tanque não podem atravessar o Canal do Panamá. Para transportar o petróleo, a Venezuela precisa de construir um oleoduto através da Colômbia. Mas o transporte até à Ásia é caro, devido às longas distâncias envolvidas. Além disso, a China não tem capacidade adequada para refinar o crude venezuelano, rico em enxofre. A China está a investir quantias significativas no aumento dessa capacidade, mas também está à procura de petróleo e gás mais próximos das suas costas no Mar do Sul da China, bem como de acordos na região do Mar Cáspio.

O laço aos EUA é uma ligação difícil de cortar para Chávez, sobretudo se o petróleo for a peça central do desenvolvimento do país. Há uma grande proximidade ao mercado dos EUA e baixos custos de transporte. Há refinarias nos EUA adaptadas à refinação do petróleo da Venezuela. E os EUA continuam a ser o parceiro comercial mais importante da Venezuela (de facto, o comércio EUA-Venezuela subiu 36 por cento em 2006). Estas são algumas das pressões que actuam sobre Chávez para manter relações económicas estáveis com os EUA12, mesmo que os EUA tenham outros planos.

Parte da estratégia de diversificação de Chávez envolve convidar companhias estrangeiras de fora do círculo tradicional das principais companhias petrolíferas ocidentais a investirem na indústria petrolífera da Venezuela e a participarem no seu plano para um gasoduto continental que se estenderia da Venezuela à Argentina. Isto faz parte dos esforços de Chávez para obter mais investimento multilateral e ligações comerciais. Chávez tem estado a convidar companhias da Índia, da China, da Rússia e de outros países. Chávez exalta os planos de investimento na América Latina como uma integração regional anti-EUA.

Mas seja na Venezuela ou noutro lugar da América Latina, a essência destes projectos é: investimento de empresas capitalistas... segundo métodos capitalistas de exploração... que serão medidos por critérios capitalistas de rentabilidade. Estes projectos têm enormes consequências sociais para as populações locais, incluindo a deslocação de povos indígenas. E têm enormes consequências ambientais.13

Chávez tem que assegurar aos antigos e aos novos investidores ocidentais um ambiente favorável aos negócios e relativamente estável. É revelador que o regime de Chávez tenha designado o sector petrolífero de “indústria estratégica”. A administração nomeada pelo estado controla firmemente esse sector (e na indústria petrolífera está proibida a co-participação dos trabalhadores, uma situação cujos limites e verdadeira natureza serão discutidos num artigo posterior desta série).

Um apoiante de Chávez com espírito crítico observou que “as empresas conjuntas são um regresso à realidade para quem esteja habituado apenas a uma dieta de discursos de Chávez... [M]as, paradoxalmente, nas actuais circunstâncias, um pacto de Fausto com o capital estrangeiro pode ser necessário para manter fora da Venezuela as forças do imperialismo [a pressão e uma intervenção dos EUA].”14

Isto captura muito do pensamento de “melhor caso” da estratégia de Chávez para um desenvolvimento baseado no petróleo. Mas este pensamento de “melhor caso” baseia-se numa compreensão errada do imperialismo. Por mais desejosos que muitos apoiantes de Chávez estejam de uma genuína mudança social, vale a pena analisar mais a fundo esse balde de água fria do “regresso à realidade”.

Um desenvolvimento que cria enclaves modernos

O imperialismo não se manifesta apenas através da intimidação económica ou das ameaças de intervenção militar – e uma acção militar dos EUA contra a Venezuela não está de forma nenhuma “fora da mesa”. Também se exprime através da estrutura e do funcionamento da economia mundial e da estrutura económica e social da Venezuela, a qual reflecte e reforça a dependência em relação ao petróleo e a subordinação ao mercado mundial.

Chávez está a perpetuar uma forma de crescimento centrado na indústria petrolífera e orientado para a exportação. A irracionalidade de uma economia tão dependente do petróleo está expressa no facto de que apenas 20 por cento da produção total de petróleo da Venezuela entra na economia interna.15 Está expressa no facto de que embora a companhia petrolífera estatal da Venezuela (PDVSA) seja o maior empregador do país, com cerca de 45 000 pessoas nas suas folhas de pagamentos, o emprego no sector petrolífero constitui menos de 1 por cento da força de trabalho total da Venezuela.16 Está expressa no facto de que, durante os anos do regime de Chávez, apesar dos elevados preços e receitas do petróleo, o desemprego oficial na Venezuela tem variado entre 8 e 15 por cento, com uma taxa de pobreza de 30 por cento no início de 2007.17

Trata-se de uma economia profundamente distorcida: hoje em dia, o sector petrolífero contribui, e este tem sido o padrão há muito, para cerca de um terço do Produto Interno Bruto (PIB) da Venezuela, para 50 por cento das receitas do governo e para 80 por cento das receitas de exportação da Venezuela. Sendo um dos principais produtores de petróleo do mundo, a Venezuela é um dos principais emissores de CO2 da América Latina e tem a mais alta taxa de emissões de carbono per capita da região.18

A economia do petróleo para exportação induz uma forma de desenvolvimento de “enclave”. Este desenvolvimento responde a fontes externas de dinamismo económico: o mercado petrolífero mundial, as condições da procura nas maiores economias imperialistas e regionais, o ritmo e a direcção dos fluxos de capital do mundo, etc. E esse desenvolvimento de mono-exportação e capital intensivo é uma barreira a um desenvolvimento agrícola e industrial global e integrado do país exportador.

Aqui é necessário explicar dois aspectos do desenvolvimento dependente que estão relacionados: o desequilíbrio e a elevada exposição e vulnerabilidade face ao mercado mundial.

Nas nações oprimidas, o sector petrolífero requer um enorme investimento em equipamento e tecnologia avançada. A satisfação desses requisitos tecnológicos provém desproporcionadamente de fora da economia – muita da tecnologia avançada exigida pelo sector petrolífero, ou é importada e requer que seja gerado câmbio externo suficiente para pagar os bens financeiros importados, ou adquirido pelas empresas conjuntas (as companhias estrangeiras de petróleo e estacões de serviço envolvidas, como a Halliburton, fornecem a tecnologia interna ou compram-na no mercado mundial).

Além disso, muito dessa tecnologia não pode ser amplamente disseminada e adoptada em toda a economia de forma a revolucionar a produção social. Isto por duas razões. Primeiro, porque muita da tecnologia especializada de perfuração e engenharia petrolífera não é apropriada às condições globais do desenvolvimento socioeconómico. Segundo, porque mesmo onde alguma dessa tecnologia pudesse ter aplicações directas e indirectas úteis, não há aí uma estrutura industrial com uma base alargada para onde canalizar os seus benefícios – exactamente porque o enfoque no petróleo constrangeu um desenvolvimento mais alargado.

O sector petrolífero não está a estimular significativamente uma nova procura de produtos industriais produzidos localmente, nem a resultar no crescimento global do nível de capacidades socialmente úteis da mão-de-obra. Não está a ocorrer um processo de desenvolvimento agrícola e industrial que fortaleça a capacidade local de inovar e adaptar tecnologia. Isto são consequências do desenvolvimento tipo enclave e baseado no petróleo.19

Com Chávez, a companhia petrolífera estatal venezuelana, PDVSA, tem procurado estabelecer acordos com companhias petrolíferas estrangeiras, exigindo como condição de entrada que elas originem (obtenham) mais fornecimentos locais. Mas, à medida que se são esgotando os recursos petrolíferos e se torna mais difícil a extracção e refinação do crude da Venezuela, pesado e rico em enxofre, aparecem novos requisitos tecnológicos. E como estas exigências são satisfeitas com tecnologia ainda mais especializada e sofisticada, o fosso tecnológico entre o sector petrolífero e o resto da economia aumenta para um novo nível.20

Entretanto, os enormes investimentos em portos, oleodutos e outras infra-estruturas para facilitar a exploração, extracção e transporte de petróleo e carvão são muitas vezes desproporcionados para as necessidades da economia global – uma vez mais, porque servem estes projectos de investimento mais isolados e orientados para o exterior, como os planos da Faixa Petrolífera do Orenoco.

Como foi acima mencionado, o sector petrolífero na sua globalidade representa uma fracção muito pequena do total de empregos. O enorme investimento de 3,8 mil milhões da Chevron na Faixa Petrolífera do Orenoco terá criado inicialmente 6000 empregos – no final, o projecto necessitará de apenas 700 trabalhadores permanentes.

Isto são fenómenos do carácter do desenvolvimento tipo enclave baseado no petróleo. O problema é que a estrutura agro-industrial global é profundamente influenciada e distorcida pelo sector petrolífero. Há uma elevada desigualdade entre a produtividade, os níveis salariais e o dinamismo tecnológico do moderno sector petrolífero e outros segmentos da economia; e, como será analisado em breve, a indústria petrolífera tem um impacto negativo na agricultura e na produção alimentar do país. Ao mesmo tempo, o crescimento do sector petrolífero capitalista de estado fortalece os interesses de classe e as forças de classe que têm um forte interesse na manutenção da estrutura macroeconómica dominante.

Desenvolver uma base agrícola que possa satisfazer as necessidades alimentares da sociedade, criar empregos no campo e desenvolver o país através de vínculos de reforço mutuo a uma estrutura industrial integrada e equilibrada, requer: a) uma distribuição muito diferente dos recursos e a atribuição de prioridades que sirvam as necessidades dos agora explorados e oprimidos; e b) uma ruptura com a lógica económica, a estrutura de opções e as pressões do sistema de mercado capitalista local e mundial (aquilo a que marxistas chamam de lei do valor).

[Continua na 2ª Parte: Pressões e constrangimentos da economia mundial]


Notas

1.  Citado em Nikolas Kozloff, Hugo Chavez: Oil, Politics, and the Challenge to the US [Hugo Chávez: Petróleo, Política e o Desafio aos EUA] (Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2006), pág. 7.

2.  Greg Palast, “Uma entrevista a Hugo Chavez”, revista The Progressive, Julho de 2006, progressive.org/magazine/hugo-chavez-interview/. Uma versão em castelhano está disponível em aporrea.org/venezuelaexterior/a23291.html.

3.  Ver Larry Everest, Oil, Power and Empire: Iraq and the US Global Agenda [Petróleo, Poder e Império: O Iraque e o Programa Global dos EUA] (Monroe, Me.: Common Courage Press, 2004), parcialmente disponível em worldcantwait.net/materials/OPE-CHAPTER%20ONE.pdf.

4.  Sobre o crescimento de Caracas, ver Allen Gilbert, The Latin American City [A Cidade Latino-Americana] (Londres: Latin America Bureau, 1998), págs. 7-11.

5.  Ver J. P. Leary, “Untying the Knot of Venezuela’s Informal Economy” [“Desatar o nó da economia informal da Venezuela”], NACLA News, 6 de Dezembro de 2006, nacla.org/news/untying-knot-venezuela%E2%80%99s-informal-economy.

6.  US Department of Energy, Energy Information Administration, Country Analysis Briefs, Venezuela, Junho de 2004, eia.doe.gov/beta/international/analysis_includes/countries_long/Venezuela/archive/pdf/venezuela_2005.pdf.

7.  Sobre o plano de expansão 2006-2012 e os seus custos e financiamento, ver as declarações e entrevistas a responsáveis da PDVSA em www.pdvsa.com.

8.  Este tipo de contradições foi assinalado por Fernando Coronil, “Magical Illusions or Revolutionary Magic? Chavez in Historical Context” [“Ilusões mágicas ou magia revolucionária? Chávez em contexto histórico”], NACLA Report on the Americas, Vol. 33, n.º 6, 2000, tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10714839.2000.11725611. Ver esse artigo e também a muito importante análise do desenvolvimento histórico da economia petrolífera e do estado venezuelano moderno e das várias encarnações dos planos “siembra petrolera” em Fernando Coronil, The Magical State: Nature, Money, and Modernity in Venezuela [O Estado Mágico: Natureza, Dinheiro e Modernidade na Venezuela] (Chicago, University of Chicago Press, 1997).

9.  Ver David Luhnow e Peter Millard, “As Global Oil Demand Tightens, A Big Producer Has Own Agenda” [“À medida que aumenta a procura global de petróleo, um grande produtor tem a sua própria agenda”], The Wall Street Journal, 1 de Agosto de 2006, wsj.com/articles/SB115439037350022856.

10.  Ver Simon Romero e Clifford Krauss, “Deadline Nears in Chavez Fight Against Big Oil” [“Aproxima-se o prazo na luta de Chávez contra os gigantes do petróleo”], The New York Times, 10 de Abril de 2007; Simon Romero, “Chavez Takes Over Foreign Controlled Oil Projects in Venezuela” [“Chávez assume o controlo de projectos petrolíferos controlados por estrangeiros na Venezuela”], The New York Times, 2 de Maio de 2007, nytimes.com/2007/05/02/world/americas/02venezuela.html. Na entrevista que deu em Julho de 2006 a Greg Palast (ver a Nota 2), Chávez fala sobre as companhias petrolíferas estrangeiras: “[N]ós não queremos que elas saiam e também não creio que elas queiram deixar o país. Precisamos uns dos outros.”

11.  Claude Larsimont, “Hugo Chavez, the Bolivarian Use of Petrodollars and the Oil Market” [“Hugo Chávez, o uso bolivariano dos petrodólares e o mercado petrolífero”], ESISC Background Analysis 10/05/2006.

12.  Ver James Surowiecki, “The Financial Page: Synergy With The Devil” [“Página financeira: Sinergia com o diabo”], The New Yorker, 8 de Janeiro de 2007, pág. 26, newyorker.com/magazine/2007/01/08/the-financial-page-synergy-with-the-devil.

13.  Sobre as questões ambientais e de direitos humanos colocadas pelas iniciativas regionais de Chávez para o petróleo e o gás natural, ver David Hallowes e Victor Munnik, Poisoned Spaces: Manufacturing Wealth, Producing Poverty [Espaços envenenados: Produzir riqueza, criar pobreza], researchgate.net/publication/277016910_Poisoned_Spaces_Manufacturing_wealth_producing_poverty_Groundwork_Report_2006, Outubro de 2006; “Carta Aberta ao Presidente Chávez”, Sociedad Homo et Natura, colocada em castelhano em nadir.org/nadir/initiativ/agp/free/imf/venezuela/2006/carta_abiarta.html em Abril de 2006.

14.  Steven Mather, “Joint Ventures: Venezuela’s Faustian Pact with Foreign Capital” [“Empresas conjuntas: O pacto de Fausto da Venezuela com o capital estrangeiro”], Venezuelanalysis.com, 30 de Setembro de 2006, venezuelanalysis.com/analysis/1980.

15.  Dados de finais de 2006 do US Department of Energy, Energy Information Administration.

16.  “Venezuela: Minerals”, Encyclopædia Britannica Online, britannica.com/place/Venezuela/The-economy#ref32722 (em inglês).

17.  Bernardo Alvarez, “Venezuela’s Global Agenda: Six More Years” [“O programa global da Venezuela: Mais seis anos”], Venezuelanalysis.com, 3 de Abril de 2007, disponível em venezuela-us.org/live/wp-content/uploads/2007/04/VENEZUELA%C2%B4S-GLOBAL-AGENDA-BY-AMBASSADOR-ALVAREZ.pdf.

18.  Dados do US Department of Energy, Energy Information Administration, Country Analysis Briefs, Venezuela, Setembro de 2006, eia.doe.gov.

19.  A questão da tecnologia apropriada e de saber se os investimentos em matérias-primas estimulam ligações a outras partes da economia tem sido há muito um tema de investigação e análise por parte de teóricos radicais, da dependência e marxistas. O relatório de 2003 da Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas, Foreign Investment in Latin America and the Caribbean, 2003 [Investimento estrangeiro na América Latina e nas Caraíbas, 2003] examina os padrões de investimento estrangeiro na América Latina e questiona os supostos benefícios e influências resultantes dos investimentos em recursos naturais, cepal.org/en/publications/1127-foreign-investment-latin-america-and-caribbean-2003.

20.  Sobre as novas tecnologias petrolíferas sísmicas e os altamente sofisticados métodos secundários e terciários de recuperação, alguns dos quais estão agora a ser usados na Venezuela, ver Jad Mouawad, “Oil Innovations Pump New Life into Old Wells” [“Inovações petrolíferas bombeiam nova vida em velhos poços”], The New York Times, 5 de Março de 2007, nytimes.com/2007/03/05/business/05oil1.html.

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